Código Florestal e reservatórios artificiais

 
61869476_1-speranza-advogados-associados-12Com as constantes chuvas sobre o território brasileiro, os meios de comunicação nacionais destacaram recentemente os riscos de cheias, inundações e até mesmo de rompimento de barragens de reservatórios artificiais. Uma imagem recorrente tem sido as dezenas de habitações submergidas ao longo de rios e áreas de reservatórios, destacando as perdas materiais dos envolvidos e o drama dos lares naufragados.
Ocorre que essas representações de tragédias contemporâneas têm seu nascimento em uma questão legal até hoje pouco debatida e de efeitos reais perversos a todos os envolvidos com reservatórios artificiais no Brasil.
A gênese dessa questão remete-se ao Código Florestal Brasileiro – Lei Federal nº 4.771, de 1965 – que estipulou como áreas de preservação permanente uma série de espaços territoriais como topos de morros, áreas com grande declividade, as nascentes de rios e áreas marginais a corpos d água como rios e lagos.
A indefinição de limites (para topos de morro e restingas) ou a excessiva amplitude de parâmetros – 30 metros a 500 metros para vegetação ao longo de rios e córregos -, além das mudanças socioambientais por que passaram muitos desses espaços nas últimas décadas, gerou diversos problemas na aplicação e fiscalização do Código Florestal.
Não passam despercebidas as repetidas críticas e propostas de revisão legislativa do Código Florestal por parte do Congresso Nacional, sintoma da necessidade de mudanças dessa lei para a realidade brasileira. Entre todas as propostas de mudanças do código, poucas se atentam ao elemento característico da legislação ambiental, que é a necessidade de efetividade das normas ambientais feitas pelo Poder Público, conforme bem definido no parágrafo 1º, III do artigo 225 da Constituição Federal.
No caso das áreas marginais de reservatórios artificiais, o Código Florestal deixou em aberto a definição da dimensão dos espaços protegidos, fato esse que tentou ser corrigido pelo Conama por meio das Resoluções nº 04, de 1985 e nº 302, de 2002. Tais resoluções, seguindo os padrões já definidos pelo Código Florestal, trouxeram definições de metragens mínimas para a delimitação das áreas de preservação ao longo dos reservatórios artificiais.
O Judiciário paulista vem reconhecendo a validade dessas resoluções em consonância com o fenômeno da deslegificação, ou seja, a retirada pelo legislador de certas matérias do domínio da lei, passando a outras fontes normativas indicadas a tarefa de regulá-las por atos próprios e de sua responsabilidade. Esse fenômeno é consequência da especialização das áreas de atuação pela administração pública em que os requisitos técnico-operacionais preponderam sobre o viés político da lei, recorrente nas áreas reguladas por agências e não distante da questão ambiental.
Todavia, o uso de metragens para a definição de espaços protegidos, em especial para sua vegetação, é medida incompleta e ineficaz, uma vez que não representa a realidade ecológica necessária para a efetividade das normas ambientais. No caso dos reservatórios artificiais essas medidas de áreas representam o ápice da incongruência normativa para com a finalidade da legislação ambiental. A distinção de metragens desses espaços protegidos de acordo com a localização rural (100 metros) e urbana (30 metros) soa como uma medida de arremedo em ferramenta inadequada pelos motivos que seguem.
É essencial, portanto, distinguir a peculiaridade das áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais, uma vez que são áreas protegidas decorrentes de intervenções humanas, e não naturais per si. Essas áreas dependem da criação do reservatório para existirem.
O fato de serem espaços consequentes de intervenção humana significativa, uma vez que surgem ao se criarem barramentos em corpos hídricos, traz outra característica ambiental própria: são espaços em que ainda não há equilíbrio ecológico estável. A falta desta estabilidade exige tratamento diferenciado por parte da autoridade ambiental. Consequentemente, o Código Florestal não pode tratá-la como área de estabilidade ecológica.
A realidade brasileira demonstra que a maior parte dos reservatórios existentes, construída ao longo do século XX, foi implementada em antigas áreas de intervenção humana, inundando-se milhares de hectares de cultura agropecuária. As áreas marginais criadas, que eram áreas de uso comum no território, tornaram-se áreas de proteção ambiental significativa sem os devidos valores ecológicos intrínsecos. Daí, a aplicação da proteção legal a esses espaços criar conflitos sociais relevantes e permeados do sentimento de injustiça da legislação ambiental.
Não obstante, a própria proteção ambiental dessas áreas como de preservação permanente conflita com princípios da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei Federal nº 9.433, de 1997) e da Política Nacional Agrícola (Lei Federal nº 8.171, de 1991), como o uso múltiplo dos recursos hídricos e o uso racional dos recursos naturais.
Nos termos da efetividade das normas ambientais, esses espaços devem ser tratados como áreas de conservação, ou seja, áreas em que o manejo do uso humano da natureza compreenda a utilização sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural para que se possa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações futuras, além de garantir a sobrevivência dos seres vivos em geral.
A fim de assegurar essa finalidade, o legislador deveria revisar os padrões adotados no Código Florestal, em especial no caso das áreas marginais a reservatórios. Mais do que parâmetros que determinem a proteção das áreas com base em metragens estáticas de espaços terrestres, devem-se estabelecer critérios socioambientais, lastreados em relevâncias ecológicas e ganhos sociais nos usos dos reservatórios.
Pedro Campany Ferraz é coordenador jurídico ambiental da AES Tietê
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

17/03/2010

Fonte:Valor Econômico