Dentro da Toyota, executivos trocam acusações sobre crise
A crise de qualidade da Toyota Motor Corp. está expondo — e agravando — uma briga interna que há muito vem se armando. A batalha opõe a família Toyoda, fundadora da empresa, a um grupo de gestores profissionais, cada lado culpando o outro pelos problemas da montadora.
Nas últimas semanas, as escaramuças nos bastidores se intensificaram. O diretor-presidente Akio Toyoda, de 53 anos de idade, neto do fundador, tentou forçar a saída de um dos executivos não pertencentes à família: seu antecessor, Katsuaki Watanabe, agora vice-presidente do conselho.
Pouco depois que a empresa fez um de seus grandes recalls de segurança, em meados de janeiro, Toyoda sugeriu a Watanabe, através de um intermediário, que o ex-diretor-presidente deixasse a empresa e passasse a administrar uma subsidiária da Toyota, segundo um executivo que diz ter sido informado da iniciativa pelo próprio Toyoda.
Watanabe recusou.
O impasse, que não foi divulgado antes, é um exemplo dramático de como a velha divisão entre as duas alas está vindo à tona em meio à crise da Toyota. O conflito atrapalha o foco de uma liderança que luta para reerguer-se depois de três meses de ataques sem precedentes nos 75 anos de existência da empresa.
Toyoda e seus aliados vêm dizendo abertamente que, quando assumiu a presidência executiva, no ano passado, após 15 anos em que o clã Toyoda não esteve no poder, ele herdou uma empresa enfraquecida pelos antecessores não pertencentes à família, que sacrificaram a qualidade em função do crescimento mais rápido e maiores margens de lucro.
Os problemas surgiram quando “algumas pessoas ficaram ambiciosas demais e excessivamente focadas no lucro”, disse Toyoda em uma entrevista coletiva em Pequim em março. Ele reconheceu que “a responsabilidade final pelos erros (…) cabe a mim”.
Uma porta-voz da Toyota se recusou a prestar comentários sobre a briga interna, dizendo: “Nós não falamos sobre alterações na equipe executiva, a menos que sejam decididas formalmente.” Ela não quis comentar as declarações de Toyoda nem permitiu acesso a Watanabe.
Em caráter privado, os diretores não pertencentes à família vêm travando sua própria campanha dentro do grupo Toyota. Dizem que Toyoda nunca se opôs publicamente à estratégia deles de crescimento do lucro quando a empresa foi amplamente elogiada por ganhar muito dinheiro e superar a General Motors e tornar-se a maior montadora do mundo. Eles dizem que os atuais problemas da Toyota não são tanto uma crise de qualidade quanto uma crise de gestão e de relações públicas criada por Toyoda. Isso confirmaria as advertências deles, já de longa data, de que o executivo não estaria pronto para administrar uma empresa global.
“Estará Akio fugindo da crítica de ser um beneficiário do nepotismo ao nos acusar e tentar justificar sua ascensão ao cargo mais alto?”, disse um dos principais assessores de Watanabe. “Uma das nossas maiores responsabilidades sociais é gerar lucros e pagar impostos. Criticar os esforços da empresa de maximizar os lucros e portanto os impostos é um total disparate.”
Hiroshi Okuda, executivo não pertencente à família que presidiu a empresa de 1995 a 1999, já disse a pelo menos dois subordinados desde o recall de veículos envolvidos em incidentes de aceleração súbita este ano: “Akio tem que sair.” Okuda, de 77 anos, continua sendo um importante consultor da empresa, embora tenha cedido seu assento no conselho no ano passado.
A Toyota se recusou a deixar Okuda disponível para comentários. A porta-voz da Toyota preferiu não comentar.
Takahiro Fujimoto, um professor de economia da Universidade de Tóquio que estudou extensamente a Toyota, diz que falar dos problemas abertamente faz parte da cultura empresarial da montadora, focada no conceito de kaizen, ou melhoria contínua. “Mas é muito raro para qualquer um dentro da Toyota criticar publicamente certas pessoas pelo nome”, ou criticar de uma forma que facilite para qualquer um identificar os alvos.
O conflito remonta a meados dos anos 90, quando a família abandonou a presidência executiva pela primeira vez desde que Eiji Toyoda, primo do fundador, assumiu o cargo em 1967. Executivos não pertencentes à família Toyoda também administraram a empresa de 1950 a 1967.
Quando o tio de Akio, Tatsuro, renunciou à presidência em 1995, após um acidente vascular cerebral, a empresa estava perdendo mercado e corria o risco de registrar seu primeiro prejuízo desde 1950. Ela era vulnerável à economia fraca no Japão, aos atritos comerciais com os Estados Unidos e à moeda japonesa forte, que prejudicava as exportações.
Uma série de executivos não pertencentes à família Toyoda assumiu o comando, de Okuda em 1995 a Watanabe em 2009. Durante os regimes deles, a montadora ganhou nova vida financeiramente e se tornou uma das empresas mais admiradas e estudadas do mundo.
A essência da estratégia de Okuda e Watanabe era intensificar os esforços de globalização da Toyota, iniciados na geração anterior de gestão familiar. Embora a empresa tivesse começado a construir fábricas nos EUA e em outros mercados na década de 80, ainda era vista como muito insular e focada no Japão.
Os efeitos dessas medidas foram fenomenais. Por volta de 2000, as vendas mundiais da empresa começaram a crescer até 600.000 veículos por ano — mais que o volume anual total da Volvo.
Nos 15 anos sem a família à frente, a Toyota atingiu outros marcos: as margens de lucro operacional dispararam para 8,6%, as maiores do setor. Em 2008, a Toyota superou a GM como maior montadora do mundo em número veículos vendidos.
Como parte de sua estratégia, Okuda procurou diminuir o papel da família. Segundo executivos próximos dele, Okuda dizia que o domínio da família fundadora era um conceito obsoleto — ainda mais quando a família tinha menos de 2% das ações da empresa, que é negociada em bolsa.
No auge do seu poder, Okuda falou com franqueza, publicamente, sobre essa convicção. “A família Toyoda acabará por se tornar um ‘santuário’ para a fundação da empresa, ao qual vamos prestar homenagens uma vez por ano”, disse ao Wall Street Journal em 2000.
Indagado então sobre as perspectivas futuras para Toyoda, na época um gerente-geral com 43 anos de idade, Okuda disse: “O nepotismo simplesmente não pertence ao nosso futuro.” E continuou: “Talentos semelhantes a Akio existem em toda a Toyota, abundantes como batatas.”
Na época, parecia que Toyoda fora deixado de lado. Em 2001, quando foi nomeado para dirigir as operações da Toyota na China, o país ainda era secundário na estratégia global da empresa. Okuda, então presidente do conselho, comparou o cargo a “enxugar o chão” — um lugar seguro para preparar um herdeiro com mais ambição do que experiência, segundo outra entrevista ao WSJ em 2003.
Mas Toyoda sanou os problemas da subsidiária chinesa e a colocou no caminho do crescimento. Ele foi promovido então, em 2005, a vice-presidente executivo, cargo no qual tinha amplas responsabilidades, inclusive qualidade, gestão de produtos, compras e vendas mundiais.
Mas, ao mesmo tempo em que galgava os degraus da hierarquia, Toyoda dizia pouco nas reuniões de alto escalão, segundo alguns executivos de fora da família. Com o progresso da empresa, os executivos que não eram da família começaram a menosprezar Toyoda e a tratá-lo como um garoto rico e mimado, não tão brilhante assim, dizem vários diretores de fora da família.
Executivos próximos de Toyoda discordam da ideia de que ele foi dominado pelo alto escalão. Apesar das melhoras no balanço da empresa, diversos recalls de veículos indicaram que sua famosa qualidade estava falhando, e Toyoda começou a dar o alerta. Em 2 de dezembro de 2005, Toyoda fez um discurso que não foi divulgado fora da empresa, questionando os novos rumos.
Falando para engenheiros e executivos de nível médio, Toyoda disse que a rápida expansão tinha excedido a capacidade da empresa de garantir a qualidade e a confiabilidade de cada modelo. Ele pediu que os engenheiros, que o ouviam em um auditório na sede mundial da Toyota, mudassem sua mentalidade e tomassem “a resolução de dar uma grande virada, priorizando a qualidade e não o volume”, segundo um resumo do discurso ao qual o WSJ teve acesso.
Os executivos que dirigiam a empresa naquele momento dizem que Toyoda nunca levou essas queixas diretamente a eles.
Em 2008, a questão da gestão familiar versus não familiar chegou a um ponto crucial quando Watanabe se preparava para aposentar-se como diretor-presidente. Okuda, na época membro do conselho, manobrou para que um de seus assessores mais próximos, também não pertencente à família Toyoda, assumisse o cargo. Shoichiro Toyoda, ex-presidente que continuava sendo um consultor influente, preferia seu filho Akio, segundo altos executivos.
Em janeiro de 2009, a montadora anunciou que Akio Toyoda substituiria Watanabe na presidência executiva em junho. Assumindo o cargo aos 53 anos, Toyoda tornou-se o mais jovem diretor-presidente da empresa desde que seu avô assumiu o cargo aos 47 anos, em 1941.
Akio Toyoda declarou que uma das suas primeiras prioridades seria cancelar muitas medidas tomadas pelo seu antecessor. Começou indicando a subordinados que não compartilhava o objetivo informal de Watanabe de atingir lucro operacional anual de 2 trilhões de ienes (US$ 21 bilhões) ou mais.
Aliados de Toyoda atribuem a queda da qualidade — bem como o aumento acentuado dos recalls — aos executivos anteriores de fora da família. Como são necessários de dois a três anos para se desenvolver um carro novo, os modelos com problemas foram criados antes de Akio Toyoda assumir o comando.
Os executivos de fora da família reconhecem que cometeram alguns erros. Um deles diz que um grande número de engenheiros inexperientes contratados de agências externas — medida que tinha o objetivo de economizar dinheiro enquanto se buscava aumentar a capacidade do departamento de engenharia — causou pelo menos parte do aumento nas falhas de qualidade.
Mas os gestores que não pertencem à família culpam o estilo de gestão de Toyoda, tanto interna como externa, que teria deixado a questão dos defeitos passar de um problema solucionável a uma crise total.
Os detratores internos de Toyoda dizem que o presidente criou uma equipe informal de seguidores fiéis, tornando difícil para os diretores comunicarem-se pelos canais formais. Um executivo de fora da família diz que a atual estrutura executiva funciona como uma “diretoria-sombra”, duplicando a informação e a gestão.
Quanto a lidar com a opinião pública dos EUA, seus políticos e sua imprensa, eles dizem que Toyoda demorou a enfrentar a polêmica em público. E, quando finalmente deu declarações, estas foram amplamente criticadas como vagas e hesitantes.
Simpatizantes de Toyoda dizem que, pelo contrário, ele tem sido claro e direto quanto à direção que deseja seguir. Em uma coletiva de imprensa no mês passado, Toyoda disse que a campanha anterior de expansão pode ter feito a empresa economizar em qualidade, comprometendo seu sistema de produção just-in-time, por exemplo. “Eu gostaria de assegurar que voltaremos a adotar esses princípios básicos e reconstruiremos os alicerces da Toyota e de seu sistema de produção”, disse (The Wall Street Journal, 15/4/10)